A lonjura

“Adeeeeus! Boa taaardiiii.”

Júlio António fala como quem canta, num canto arrastado que quer imitar a fala dos que vivem “do outro lado da água”, e João Duarte compara esse falar a um empurrão. “Parece que estão mandando a gente por ‘í’ abaixo com muito vagari, enrolando.” Júlio António e João Duarte falam sem pressas de outro falar com mais demoras. São dois alentejanos a imitar algarvios num teatro onde a boa vizinhança não permite mais imitações.

Quase a fazer 90 anos, Júlio António sempre trabalhou “olhando” o Algarve. Vive na margem direita da ribeira de Odeceixe, “mesmo na extrema” com o rio, e isso faz dele alentejano. Só isso, porque no resto garante que é igual aos que estão na aldeia que tem crescido tanto “que quase já chega ao mar”. Comem papas de milho como ele e gostam, como ele também gosta, de caldo de batatas com “toicinho” frito ou linguiça. Só a fala “diferencia” quem vive nas duas margens da ribeira de Odeceixe, fronteira natural entre Alentejo e Algarve, insiste Júlio António apoiado na enxada com que vai guiando a rega das cebolas ao sol do meio-dia.

Está em Baiona, de olhos postos em Odeceixe. O mesmo é dizer que está no Alentejo mas o Algarve não lhe sai da vista. “Quero lá ir este ano ver o mar. Agora têm um comboiozinho e não se paga.”

Entre a horta de Júlio António e o mar de Odeceixe há uma ponte pelo meio e é para ela que ele olha quando indica a “lonjura” que o separa dos do Algarve. Um passo. “É tudo muito perto, mas há este rio que vem de Monchique para baixo…” Já era homem quando a ponte veio unir as duas margens. “Foi em 1936. Antes, havia aí barcas e umas passadeiras para quem não pudesse pagar meio tostão”, conta, fechando um rego que há-de mudar o rumo da água com que vai amaciando o chão da cebola. “Vou tirá-la da terra amanhã, que hoje ainda não é maré.” E agora já não é de mar, mas de lua que ele fala. “A cebola apanha-se e dispõe-se na lua cheia, mas só ao sábado ou ao domingo”, que aos dias de semana “não calha bem”, explica sem levantar a cabeça do chão. Júlio António não precisou de andar na escola para aprender a ler a lua. “É ensinamento que não vem nos livros. Olho para ela e pronto”. E a lua encheu “antontem”. Foi à quinta, e a cebola será apanhada ao sábado porque quando pode Júlio respeita os domingos.

O discurso é de um alentejano mas podia ser de um algarvio, que a “a religião tanto é para uns como para outros” e dos dois lados da fronteira o sagrado mistura-se com o profano. Júlio volta a dizer que tem quase 90, que a sua aldeia é de gente velha e em Odeceixe há muitos novos, mas em Baiona ele não é o mais velho dos velhos. “Ainda há uma mulher mais velha. Chama-se Margarida.” Júlio fala sempre da idade e é mais uma vez dela que fala quando confessa, como se de um pecado: “Ontem tive saudades da morte.” Não há nada senão silêncio e novo levantar da enxada. É Júlio a deixar a água passar porque essa “saudade” também já passou.

Júlio é alentejano porque calhou nascer na margem direita da ribeira de Odeceixe, mas bem que podia falar como os algarvios se tivesse nascido do outro lado. É de lá que se identifica, irónico, João Duarte. “Sou alentejano, mas hoje sou algarvio.” Para mudar de identidade basta-lhe passar a ponte e regar o campo de milho com água que vem do Alentejo, da barragem de Santa Clara. “Aqui ou ali é a mesma coisa. Só a água é mai’mole.” A de lá ou a de cá? João Duarte hesita. “A de lá, a de lá”, insiste. E o alentejano esquece que está com os pés no Algarve.

O campo de milho onde trabalha João Duarte fica mesmo em frente da horta de Júlio António, mas na margem esquerda do rio, no caminho de Odeceixe para a Marmeleira, paisagem pontuada de alfarrobeiras e figueiras e sem niguém à vista. João Duarte não se queixa de solidão, mas adianta que dali até à povoação mais próxima ainda é uma “boa bucha”. Não se apercebeu da chegada de Manuel da Silva, algarvio nascido no Alentejo, na aldeia de Vale dos Alhos, e a morar em Odeceixe desde “a idade de sete anos”. Malha feijão numa eira improvisada e diz que é feijão algarvio mesmo que regado com água alentejana. Também ele imita o falar dos outros mas identifica aquelas terras como sendo “extremadura”, assim com “x”. Está na eira e a eira é um poço coberto. Está empoleirado e abre os braços. “Estamos ou não estamos na extrema?”

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