Em casa havia três livros. Verdes, de capa dura, muitas páginas, da mesma colecção. Uma série sobre medicina natural, escrita em português do Brasil, com receitas de mezinhas e vendendo a ideia de que tudo se cura com plantas. Tantos anos depois, recorda apenas uma excepção, tão clara. À frente da palavra “câncer” estava: “limão. Procurar médico”. Perdeu inocência, ilusão. Não havia milagres e não era possível um mundo sem médicos.
Não tinha mais de seis, sete anos. Leu os três livros de uma ponta à outra, como as crianças que repetem leituras, filmes até os saberem de cor. Ela também decorou tudo, até as ilustrações das plantas. Naquelas páginas não havia fotos. Só desenhos a preto e branco e isso agradava-lhe, talvez cansada dos livros infantis que lhe enchiam o quarto e também sabia de cor. Mas fora do quarto, aqueles eram os únicos três livros. Havia revistas, jornais que se acumulavam, mas livros de gente grande só aqueles e ela queria saber o que liam os grandes. Achava que devia ser mais do que aquilo, mas era aquilo o que lhe chegava.
A carrinha da Gulbenkian que ia à aldeia não lhe dava isso e por isso não a recebia com o mesmo entusiasmo das outras crianças. Ela tinha livros infantis e juvenis e gostava que fossem seus, gostava de os visitar de vez em quando, abri-los, voltar às páginas, às frases, e ter de entregar depois de ler era quase como se lhe levassem a cadelinha rafeira que a seguia por todo lado lá em casa. A Canita. Por isso não pedia livros. Não era orgulho. Era afecto. E na falta de mais lá ia para a enciclopédia medicinal, a sua iniciação à leitura de gente grande, onde aprendeu a gostar do cheiro do papel, da textura das páginas, do equilíbrio que a capa dura permitia na estante vazia.
Olhava para as prateleiras e o seu sonho era um dia enchê-las. Perguntava à mãe se era possível e sempre teve um sim como resposta. Hoje olha para os três livros de capa verde. Estão no centro. Lugar de destaque de uma imensa parede forrada a lombadas para gente grande.
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