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O baú

Lá estava ele. 21 anos, a mesma cara, o mesmo sorriso, uma pose ensaiada para a foto. Roupa de soldado raso. Podia ser modelo para fotografia, num corpo inteiro de fazer inveja.

Lá está ela. Olha-o e reconhece-lhe o ar a que as velhas da terra chamam de “malandro”. Malandro de aldeia, daqueles que as mães temem para as filhas porque gosta da boa vida.
Ele diz que gosta do bom da vida. E lá está, soldado, na foto, como um manequim a posar. Ela, a namorada, ficou lá, entre as velhas e as outras raparigas à espera não sabe bem de quê.

Ele há-de vir se não morrer. Mesmo estropiado. E então hão-de casar e ter filhos e ir para a cidade como ela sempre sonhou. O resto é o que tem de ser. Será assim.

Não lhe ensinaram a duvidar do que tem de ser, mesmo que ela não goste muito desse ter de ser. Acomoda-se. Só não ouve o pai que, como as velhas, a avisa contra o “malandro”. Ele é bonito, que há ela fazer? E depois tem aquele sorriso… É uma foto sem cor, mas ela pinta-a com a memória.
E trocam frases que nunca ninguém sabe em cartas que sabe-se lá se chegam.

Não há outra maneira e dois anos depois ele vem.
Ela vê-o. Quase cem quilos, uma barba que lhe tapa as feições de menino, os olhar cheio de um ódio que ela não sabe o que é, e aquele sorriso, ainda sedutor, mas sem esconder a tristeza do que fez, do que viu, do que não quis fazer e que por isso foi castigado. Ela tentou ver nele o rapaz da foto, o mesmo de quem se despediu um dia, há muito tempo, num cais de Lisboa de que não lembra o nome porque estava mais atenta ao adeus.

E agora?

Ela não o vê a ele. Nem ao da foto a preto e branco que guarda entre outras numa caixa de cartão que já foi a dos sapatos que estreou para a despedida dele. Deixou-as estar ali mesmo depois da tia lhe ter oferecido um baú pequenino de madeira para guardar a sua colecção de namorada de soldado no ultramar. Uma condição de espera que o enxoval ia ajudando a atenuar. Por isso bordava, fazia rendas para lençóis. Deu para encher outro baú, o que havia de levar com ela quando fosse com ele, mesmo contra a vontade do pai.
E agora ele ali estava e ela não sabia o que fazer com ele.

Parece que o gostar se tinha ido. Que lhe chegara outro homem que a assustava e em quem não pensara quando bordara as folhas para a toalha de mesa.
Sim, ela parece que já não gostava. E disse à tia e a tia disse-lhe que agora tinha de ser. O que haveriam de dizer. E depois isso era dar razão ao pai e depois… Ela já só pensava no sonho. Na cidade. Em dar aulas a crianças, ensinar-lhes as primeiras letras. Era a sua vocação como todos lhe diziam. Menos ele. Que a queria só para ele. E agora?

E tudo o que se disse nas cartas parece já não fazer sentido. Ele trouxe as dela. Ela guarda as dele. Só eles sabem e eles não dizem.
Ele olha para ela como para uma salvação. Ela olha para ele com resignação.
Pode ser que o sorriso volte, o mesmo, o malandro. E a barba corta-se. Já o ódio… Isso ela não sabe. Nem ele.

Resta o que está na caixa de sapatos e há-de ser transferido para o tal baú quando as cartas de um e outro se juntarem. Porque elas vão juntar-se. O tal “ter de ser”. E ela há-de voltar a gostar dele quando lhe passar a surpresa dos olhos que não escondem a guerra. E o que se escreveu há-de testemunhar o antes. Porque aqui há um antes e um depois e o depois é muito maior. Trouxe uma filha. É ela quem está agora em frente ao tal baú. A filha, a tal que só conheceu o depois, tem ordem para saber o antes. Ajoelha-se diante de um baú que ninguém abriu desde que foi fechado pela primeira vez. Há mais de 40 anos. O pai e mãe estão ali, quase crianças, numa caixa fechada, em tudo o que foram e que está no que disseram, que escreveram.
E ela olha o baú sem conseguir rodar a chave.