Berço de Ferro

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Havia um berço de ferro para onde iam todos os bebés que nasciam naquela casa em várias gerações.

Nasciam na cama dos pais e era ali que passavam a dormir, ao lado. Era branco, de ferro, com rosáceas na cabeceira e os pés em baloiço. Alguns desses bebés nunca chegaram a ter outra cama. O luto dessa morte era feito com a chegada de outro bebé.

E a vida continuava até que uma geração já não quis usar o berço usado e o berço foi para a casa onde se guardavam as batatas. cheguei a embalar-me nele aí, no fresco das telhas vãs,na brincadeira e uma penumbra que ficava bem com aquela cama. Eu pertenço à geração que já não foi para esse berço.

Até que um dia a adega deixou de receber batatas, a telha vã foi substituída por uma placa e a geração a que pertenço deixou de plantar batatas. A mesma geração que parece morrer de medo da penumbra.

O berço? Deve estar num sítio onde ninguém sabe a história dele nem os nomes de todos os que lá nasceram.

Vicente Jorge Silva

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“Gostava de cultivar a tal fantasia infantil, a de que vivia num mundo em que a ilha era o único universo real e tudo o que se passava fora dele era imaginário. E que os jornais que traziam as notícias do exterior eram como invenções dos Ficheiros Secretos, com situações produzidas por uma central de informação.”

Assim vão as conversas num livro que chega amanhã às livrarias. O jornalismo, o cinema, a política, os livros, a pintura, as viagens, os muitos interesses, a frontalidade, as paixões e desilusões de Vicente Jorge Silva, fundador do Publico, da Revista do Expresso, do Comércio do Funchal

PuroAcaso


1931, Luiz Brandão, São Paulo, Brasil

Naquele dia, ele ganhou coragem e encostou-a à parede. Surpreendida, ela correspondeu e deitou-lhe a mão. Este beijo tem 82 anos, é brasileiro, mas ninguém lhe reconhece sotaque nem lhe dá essa idade.

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Suspensa.

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Os pés pisavam a geometria do passeio. Tinham de caber no quadrado da lage ou perdiam, como no jogo da macaca.

O corpo que transportavam era uma ausência. Sem tempo nem lugar.
Cabeça a digerir informação e totalmente entregue aos pés. Eles que guiem porque transporto, fresca, uma personagem que anda e não me quero afastar dela. Mahler soa. O homem que o escritor inventou gostava de andar e de música e de pássaros e queria saber dos outros.
Vou com Julius e ausento-me. O truque é deixar-se levar e ser como um voo.

Sigo os pés que pisam o passeio com o olhar, como sigo os rostos. Desvio-me do rapaz de corpo imenso, mais um corpo que não cabe em si. Procuro-lhe expressão. É igual à de outros corpos, como se na sua desmesura perdessem a capacidade de revelar outra coisa além de um enorme “estou aqui”. Tudo é excesso excepto a expressão. Olhos encovados, lábios salientes e um olhar para a frente que não é em frente. Vão rua acima, atravessando a ilha, e eu sempre a desviar-me daquele compacto. Encontro outro rapaz de skate a descer a Maddison, e outros skateboards com rapazes e algumas raparigas em Union Square. Nevou, mas não chega. Uns turistas com sotaque russo perguntam-me que edifício é aquele e fico muda por segundos. Não era eu a estranha? Central Station, digo. Ahhhhs e ohhhhhs e o flash a disparar e eu a desviar-me do frio. Um desvio para nada.

Os pés andam, mas não sinto o resto e a dormência ajuda a seguir. Ainda tenho fresca a conversa com o escritor que falava de Pessoa, que dizia que queria andar na cidade de Pessoa para saber mais do escritor. A geografia nunca é alheia, penso na minha dormência. Esta ajuda ao passo, instiga ideias. Deambular é criar. Pelo menos para mim, aqui, como no mar. E agora era andar até me perder… talvez me encontre ou alguém me procure. Não é bem isso. É voltar a ter de saber onde pertenço. Que expressão levo eu, agora de café na mão, a aquecer o passo perdido mas que sabe o caminho? Olho-me nas montras, mas vejo uma imagem distorcida. Não me reconheço mas sei que sou eu e alguém me sorri lá de dentro. Sorrio. Uma rapariga de leggings e ténis de corrida, corre. Não me vê. Olha o chão. Olho-o também. O mimetismo sempre a intrometer-se.

Não sei há quantas horas ando. Deixei de olhar para o relógio e essa é outra perdição. Boa. Não me apetece encontrar-me nas horas, que alguém me alerte para elas. Estou suspensa. E por agora é onde me apetece estar. A terra está cheia de vontade de nos expulsar.

Video

Quem disse que a música não nos pode salvar?


Esta alegrou o meu dia.

In a big jet plain

Levo uma música. Não me lembro de a ter escolhido…  Gonna take you for a ride in a big jet plane.

Angus & Julia Stone a picar-me os miolos como quando os ouvi pela primeira vez numa estrada larga, a caminho do mar na costa leste da América. Foi desde aí. Um frio de rachar, eu a fazer anos e a querer esquecer que fazia.

Bela música para fugir. Pelo menos naquele dia era. Bom som para sair da idade. Agora cola-se, nostálgica, miudinha. Lá está ela enquanto os seguranças me mandam fazer tudo o que não quero.
Penso nos pés sem sapatos. A revelação pública das meias irrita-me mais do que a mulher polícia que me manda pôr os braços para cima enquanto os dela seguem para baixo, na direcção das meias. Eu ali, exposta, e vale-me a música que ganhou direito a beatificação e me iludiu nesse tempo. Para mim, a meia é mais íntima do que o pé. Nada a fazer. Gonna take you  for a ride  in a big jet plane… Não olho para os pés, ou melhor, para as meias. Angus e Julia continuam e se o pensamento tivesse headphones emprestava um à senhora que me pede agora um teste às mãos. Vestígios de quê? Posso ir detida? E assim descalça, ou melhor, de meias?

copiar receitas

 Menina escrevendo
Henriette Browne, óleo sobre tela

Os primeiros escritos voluntários foram cópias de receitas.

Sentava-me à mesa da cozinha e passava horas esquecida num mundo mágico onde entravam:
– formas
– ovos
– farinha
– açúcar
– salazares
– almofarizes.

E acontecia o milagre de chegar ao fim e “servir quente, com chocolate derretido por cima”.

O processo repetia-se. Leite-creme escrito a caneta azul, com a mão pequena a carregar bem, viagem lenta a sulcar o papel, folhas de linhas, folhas separadas que a mãe comprava em resmas à medida do vício. Ainda não andava na escola e aquele exercício juntava duas paixões: a vontade de aprender a cozinhar numa altura em que não lhe era permitido aproximar do fogão, e a de aprender a escrever. Devia ser capaz de dominar a escrita à custa de tanta cópia de coisas boas e fixar as coisas boas até não precisar mais do papel.

Noutro dia descobriu o dossier onde a mãe ainda guarda esses escritos. A letra floreada a tentar não sair da linha, a capa florida, a imitar papel de parede inglês, os aros de ferro meio enferrujados, o nome desenhado na contra-capa, nome completo, a sua pertença.

E a constatação ante aquele arquivo: salivou ao ler o que escreveu com cinco anos.

Aside

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Hoje comecei a leitura de O Verão de 2012, um livro que antes de o abrir já me fez viajar. Fixo-me na capa. Revivo marés-baixas, banhos gelados e de sol. Leituras e livros cheips de areia de uns meses tão cheios de tudo que só cabem nessa frase curta. O Verão de 2012. Agora abro a página e entro no livro de Paulo Varela Gomes, o mais recente da colecção de ficção da Tinta da China. “A tragédia do Largo do Rato conduziu a que muitos jornalistas e outras pessoas tenham insistido comigo para os ajudar a compreender aquilo que se passou. Profissionalmente não devo — e pessoalmente não quero — trazer a público elementos do meu trabalho que possam permitir mais especulações acerca do comportamento da personalidade e das motivações do meu paciente. O Verão de 2012 foi terrível para ele.”

Uma balada de nova iorque

Joe Gould, bohemian artist
Philippe Halsman, USA. NYC. 1943.

Procurei por Joe Gould. Sabia-o morto, mas mesmo assim.

Não era bem eu, era eu feita personagem de um tempo que não foi um meu, de uma história que não foi minha, mas da qual me apossei.

E aquele seria um lugar provável. Mesas de madeira compridas gastas pelas mãos, pelos cotovelos, pela escrita. Procuro-lhe os sinais sem na altura perceber que pensava em alguém baixinho e enfezado, escondido debaixo de uma barba tão desfiada quanto ruiva. Talvez fossem os rostos gastos pela boémia… outros mais pela destruição pura, a que resultou da ausência de qualquer alusão ao prazer. Escrevem ou fingem que escrevem, ou fingem que lêem. Eu também finjo, afinal.
Só volto a mim quando nos olhos perdidos dos outros, aqueles cujo horizonte não vai além das imagens que lhes vão dentro. Só volto quando olho os olhos deles e eles nem pestanejam. Mas continuo sem ver Joe Gould. Vejo gente a aquecer-se numa biblioteca pública, nada mais. Lá fora gela-se. E outros que teclam e estão ali porque não podem pagar um café que lhes daria direito a uma mesa e algum tempo num lugar com vista para uma rua de gente cheirosa. Aqui, onde não está Joe Gould, cheira a pobreza e são os pobres que ali vão. Joe Gould não era de todo pobre. É chocante? O cheiro a suor e roupa suja e descuido? Pode ser, mas só para os que não sabem nada desses sítios, onde os pobres existem entre as lombadas dos livros que como eles, já poucos ou ninguém consulta. Cheiro a abandono. Joe Gould não era assim.

Mas Joe Gould não está. Claro que não, morreu.
Nunca li o obituário. Talvez vá à procura, mas distraio-me.
Sempre os outros, os que estão à volta. Escuto-lhes as conversas como Gould as escutava, seguindo o que li na vida que dele contou Joseph Mitchell, esse homem com tanto saber de jornalismo para contar de gente, e que, como Sorayan, Freeman ou Cummings, estava destinado a encontrar e deixar-se infectar por Joe Gould, o boémio assumido e tímido relutante a quem o álcool limpava a vergonha. O historiador da nossa redundância que vivia com o que tinha num saco de papel e que tantas vezes jantava ketchup antes de adormecer onde a cabeça o tombava.

Li acerca de Joe Gould antes de conhecer Nova Iorque e isso é a mesma coisa. Não é o mesmo saber dele sem saber do Village, do Bowery, do Harlem e das margens do Battery. Adivinhar-lhe os bares, ver outros, esperar encontrá-lo com o seu livro infinito debaixo do braço, pagar-lhe um café escuro sem açúcar, à cowboy, como ele gostava. Como eu gosto, lembrou-me alguém que me conhece melhor do que o Joseph Mitchell conhecia o Joe Gould. Pagar-lhe um café e ficar a ouvi-lo… Fantasia.

Vou outra vez de Nova Iorque sem ver o Joe. Lamento. Claro que continuo a olhar em volta. E no Village, justamente ali numa das ruas por onde andava, lá está ele, mas sem eu saber que ele estaria lá, dentro de um livro numa pequena livraria. “Up in the old Hotel“, uma compilação de textos escritos por Joseph Mitchell para a New Yorker, a preço de saldo. A pechincha vai comigo para casa, pelo preço de um café enfeitado por um barista de segunda. Mas só dias depois descubro, nela, Gould. O “Professor Sea Gull” constantemente a escrever a “sua” “História Oral”, e Mitchell, o maravilhoso contador de histórias verdadeiras que não lhe resiste. Porque é irresistível um homem que desdenha o dinheiro e tudo o que ele pode comprar, que vive nas ruas entre o que pede e o que lhe dão para continuar a coleccionar o que se diz, o que ouve por onde anda naquela Nova Iorque dos anos vinte, de um século que já passou inteiro. Mitchell descobriu-o em 1942 e fez-lhe o perfil, o primeiro de dois, que publicou na The New Yorker. Anos depois tornou a história mais completa e “O Segredo de Joe Gould“, assim lhe chamou, tornou-se um hino ao jornalismo e à literatura. Li-o assim, em Lisboa, há uns anos, uma edição de capa cor de rosa editada pela D. Quixote e tornou-se um dos meus livros e Joe Gould uma das minhas personagens, daquelas com quem de vez em quando dou por mim a trocar ideias. Tantos anos e ele ainda possível fora da literatura, com o seu sotaque de Harvard, onde se formou, e agora escritor de oralidades. E pode lá haver escrita melhor? 20 mil conversas tão desconexas como universais fervorosamente passadas a papel, contou Mitchell. Gould nem sempre dizia, calava mais e foi calando cada vez mais. Às vezes fingia que falava para dizer só o que queria.

No Village. Há uma toada que guia os passos. Frio, muito frio. Abro a boca para apanhar um floco de neve. Não vejo Joe Gould, alguns parecidos, mas não me lembram Joe; para falar a verdade, ninguem se compara a esse imitador de gaivotas que, como eu, gostava do rio e do grandes corpos de água, abraçadores de alma.

E estou quase a ir embora. Longe de Gould, longe do nosso Village — apropriei-me –, para longe de uma cidade que partilhamos por razões tão opostas, em tempos tão distantes em circunstancias tão diferentes.

Uma voz embala-me. Conta-me a história que Mitchell escreveu, e eu oiço, sem saber que seria um dia um embalo, uma história para eu adormecer. Mas enquanto langueio no meu embalo, vou despertando. Porque reconheço a figura de Gould, estão lá os traços, a rebeldia, mas parece que não era bem bem assim, mas também não deixava de ser assim. Era possível que fosse. Embalo, pois. A voz tem o timbre do Village, podia ser Gould. Quem sabe se não seria. Contava e contou, e no fim o título “Professor Sea Gull”… Emoção da grande.

Encontrei Gould, de facto, fora do Village, não na biblioteca. O Gould antes de eu o conhecer, graças a uma voz, e Gould tornou-se ainda mais uma das minhas baladas de Nova Iorque.

Mudar

Talvez corte curto, ou pinte de loiro, mude o meu nome para um que copie uma estrela, invente a palavra, encontre a casa, arranje uma sombra porque preciso de sol.
Há dias em que nada pode ser o que já foi