Tag Archives: duvida

A dúvida

Ela nunca acreditou. Ficava em silêncio, a mão no queixo com o olhar longe, os dedos inquietos. De vez em quando uma pergunta. “Como é se pode tirar uma costela a um homem e daí fazer uma mulher?”, e os olhos continuavam a ver se viam esse momento que lhe tinham dito estar no princípio de tudo.  Só depois olhava para mim. Esperava uma resposta. Eu olhava para cima, pescoço o mais para trás que podia, pequena demais para responder a alguém que me ensinava quase tudo. Dela eu não esperava perguntas, não a mim. Mas ela não tinha medo daquela exposição. Não se via sábia. Como podia? Não sabia uma letra a não ser o seu A do nome que aprendeu a assinar há muito tempo quando era baby-sitter numa família rica de judeus que fugiram da II Guerra. Trocaram Paris por Lisboa quando as meninas das aldeias iam para a cidade “servir”.

Era assim que dizia. Que tinha “servido”. Filha única de um pai que tinha sido menino rico e a quem uma madrasta má tirara tudo. Contava numa sequência que eu conhecia de cor. Vinha então a história da mãe que não a tinha deixado ir à escola porque uma menina não andava sozinha na rua, na macholice com os rapazes e então a menina em vez de aprender a ler foi para Lisboa tomar conta de crianças mais pequenas do que ela e foi uma dessas crianças, a Mané, quem a ensinou a “assinar”. Ela aprendeu a desenhar essas letras e a falar francês. Duas ou três frases que repetia para mostrar que era verdade o que dizia.

Mas estava a servir e não esquecia essa condição de humildade, servil aos que não se cansavam de lhe elogiar a beleza, a elegância, os modos e a desafiavam para ser mais do que ser mais do que a rapariga de avental branco com folhos. Ela baixava a cabeça. Era aquela que não sabia ler nem escrever e estava ali para “servir” e isso só a a podia fazer baixar os olhos, ela, naturalmente altiva, de uma altivez que se tem ou não se tem. Não se ensina. Baixava os olhos, esperava, recuava, tinha medo de ser gozada e quis alguém da sua condição em vez do oficial da Marinha que lhe propusera casamento. “A mim! Eu que nem sabia ler! Comigo não gozam.” Disse não, mandou-o à vida, sabia qual era o seu lugar. Gostava da cidade mas via no campo a protecção contra o que chamava “a sua ignorância”. Ia voltar ainda que isso a fizesse chorar.

“E dizem que o homem foi à Lua. Inventam cada uma. E depois há quem acredite. Mas também não admira, agora fazem tudo!”, continuava no seu monólogo desafiante. A neta que sabia ler, só tinha de lhe saber explicar. Era essa a sua obrigação ainda que tivesse uma boneca na mão com uns cabelos para pentear. Para ela, a avó, Deus e a Lua estavam no mesmo patamar. Questão de fé. E ela tinha fé e ai de quem duvidasse disso. Tinham-lhe dito que era assim e acreditava. Menos quando estava com a neta. Aí lançava as suas dúvidas à espera de uma explicação mas sem a pedir. E a neta ouvia-a, como a ouvira ensinar-lhe a contar as horas conforme o movimento dos ponteiros do relógio-despertador no quarto do avô, mesmo ao lado do chapeleiro, na mesma mesa de tampo de mármore branco onde apoiava o corpo pequeno, encavalitado numa perna e a outra a abanar no ar, suspensa da cadeira, enquanto a avó lhe ditava cartas para a família em Lisboa.  – “Como estás? Espero que de saúde que nós por cá vamos andando…” Dizia isto com a mesma expressão com que interrogava o mundo, intrigada com o mecanismo que fazia a neta pequena escrever, sem perceber como aquelas letras formavam um sentido numa folha de papel de linhas na letra desalinhada de quem ainda não foi à escola mas já sabe o que ela nunca soube.

“Tu, que sabes ler podes saber tudo”, afirmava. “Diz lá, será possível fazer uma mulher da costela de um homem?” Aí, o olhar já se fixava em mim, inquiridor, impaciente. Afinal, eu que sabia ler não sabia isso? “Toca a aprender”, mandava.  E seguia, com o olhar a duvidar do que afirmava em frente a todos, ser uma certeza. “Como não?”

Menos à neta a quem ensinou o que era a dúvida.

O ciúme

Ele bateu com a porta.

Disse “até logo e um beijo” e ela teve um calafrio.

Dos romances, associou o eriçar do couro cabeludo, o frio no estômago, a água a chegar aos olhos até os turvar àquilo a que chamam ciúme. Sim ela ficou enciumada só com aquele “até logo e um beijo”. Medo de perder. Raiva irracional contra o mundo. Afinal anda alguém danadinho para lhe levar o objecto amado. Objecto amado? A expressão não soou bem, mas deixou-se ir na espiral. Sim, porque a ameaça anda lá fora e foi para lá que ele foi, e ela ali, sem poder fazer nada contra o mundo que continua a girar com a mesma indiferença. Sim, anda alguém a atacar a presa para a levar para bem longe e, ainda por cima, por vontade dela, da presa, que há-de ser seduzida por um sorriso, uma mini-saia, um decote.

Agrr…  É preciso defender-se, mas de quem? De todas. Não há historial de traição. E então? Então como explicar o arrepio sempre que pensava nele sozinho, a ir sabe-se lá para que sítios que ela não conhecia e com gente de que só ouvira falar por ele?

Claro que ela nunca confessaria. O ciúme era para os fracos, os inseguros e ela e era uma mulher segura. Sempre fora, mas e agora? Estava a roer as unhas. Nunca roía as unhas e nem gostava daquele sabor a pele e verniz.

Era preciso estratégia. “Um ciumento deve ter estratégia”, e o raciocínio era tão contorcionista quanto as voltas que dava às mãos para chegar ao melhor ângulo da última unha. Não se avisa: “cuidado, que eu tenho ciúmes!” Como era de gargalhada pensar nas perguntas que poderiam dar respostas de alerta ou sossego. Um ciumento não quer propriamente sossego para o ciúme, parece mais esperar um motivo para dizer: “Vês, vês”; “gotcha”. E seguia-se o “não mereço” do costume. Porque para o ciumento ninguém é tão capaz de amar como ele e aí entra a variável mérito. Não há mais ninguém com a mesma capacidade de amar, e o rival não passa de um canalha cujo fim é “dar cabo de nós”. E são olhinhos e avanços vindos de todo o lado, flechas de falsos cupidos, disparadas sem tréguas. Santa imaginação, maldita imaginação. É dela que vem o cíume? Então o ciúme é dos criativos?! Hummm…
Agora dava jeito outra unha para roer.

O baú

Lá estava ele. 21 anos, a mesma cara, o mesmo sorriso, uma pose ensaiada para a foto. Roupa de soldado raso. Podia ser modelo para fotografia, num corpo inteiro de fazer inveja.

Lá está ela. Olha-o e reconhece-lhe o ar a que as velhas da terra chamam de “malandro”. Malandro de aldeia, daqueles que as mães temem para as filhas porque gosta da boa vida.
Ele diz que gosta do bom da vida. E lá está, soldado, na foto, como um manequim a posar. Ela, a namorada, ficou lá, entre as velhas e as outras raparigas à espera não sabe bem de quê.

Ele há-de vir se não morrer. Mesmo estropiado. E então hão-de casar e ter filhos e ir para a cidade como ela sempre sonhou. O resto é o que tem de ser. Será assim.

Não lhe ensinaram a duvidar do que tem de ser, mesmo que ela não goste muito desse ter de ser. Acomoda-se. Só não ouve o pai que, como as velhas, a avisa contra o “malandro”. Ele é bonito, que há ela fazer? E depois tem aquele sorriso… É uma foto sem cor, mas ela pinta-a com a memória.
E trocam frases que nunca ninguém sabe em cartas que sabe-se lá se chegam.

Não há outra maneira e dois anos depois ele vem.
Ela vê-o. Quase cem quilos, uma barba que lhe tapa as feições de menino, os olhar cheio de um ódio que ela não sabe o que é, e aquele sorriso, ainda sedutor, mas sem esconder a tristeza do que fez, do que viu, do que não quis fazer e que por isso foi castigado. Ela tentou ver nele o rapaz da foto, o mesmo de quem se despediu um dia, há muito tempo, num cais de Lisboa de que não lembra o nome porque estava mais atenta ao adeus.

E agora?

Ela não o vê a ele. Nem ao da foto a preto e branco que guarda entre outras numa caixa de cartão que já foi a dos sapatos que estreou para a despedida dele. Deixou-as estar ali mesmo depois da tia lhe ter oferecido um baú pequenino de madeira para guardar a sua colecção de namorada de soldado no ultramar. Uma condição de espera que o enxoval ia ajudando a atenuar. Por isso bordava, fazia rendas para lençóis. Deu para encher outro baú, o que havia de levar com ela quando fosse com ele, mesmo contra a vontade do pai.
E agora ele ali estava e ela não sabia o que fazer com ele.

Parece que o gostar se tinha ido. Que lhe chegara outro homem que a assustava e em quem não pensara quando bordara as folhas para a toalha de mesa.
Sim, ela parece que já não gostava. E disse à tia e a tia disse-lhe que agora tinha de ser. O que haveriam de dizer. E depois isso era dar razão ao pai e depois… Ela já só pensava no sonho. Na cidade. Em dar aulas a crianças, ensinar-lhes as primeiras letras. Era a sua vocação como todos lhe diziam. Menos ele. Que a queria só para ele. E agora?

E tudo o que se disse nas cartas parece já não fazer sentido. Ele trouxe as dela. Ela guarda as dele. Só eles sabem e eles não dizem.
Ele olha para ela como para uma salvação. Ela olha para ele com resignação.
Pode ser que o sorriso volte, o mesmo, o malandro. E a barba corta-se. Já o ódio… Isso ela não sabe. Nem ele.

Resta o que está na caixa de sapatos e há-de ser transferido para o tal baú quando as cartas de um e outro se juntarem. Porque elas vão juntar-se. O tal “ter de ser”. E ela há-de voltar a gostar dele quando lhe passar a surpresa dos olhos que não escondem a guerra. E o que se escreveu há-de testemunhar o antes. Porque aqui há um antes e um depois e o depois é muito maior. Trouxe uma filha. É ela quem está agora em frente ao tal baú. A filha, a tal que só conheceu o depois, tem ordem para saber o antes. Ajoelha-se diante de um baú que ninguém abriu desde que foi fechado pela primeira vez. Há mais de 40 anos. O pai e mãe estão ali, quase crianças, numa caixa fechada, em tudo o que foram e que está no que disseram, que escreveram.
E ela olha o baú sem conseguir rodar a chave.